terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Dia de cão



Enquanto todos haviam ido descansar, ele permanecia ali olhando o céu. Gostava de ficar horas e horas assim quando as coisas não iam bem, olhando para o nada, sem saber se esperava algo. Talvez esperasse. Talvez estivesse zangado com alguém, com a vida, ou seja lá quem é o dono de tudo isso.

Começou a chover.

O dia não tinha sido nada bom, além de ser uma correria no trabalho com um bocado de clientes insuportáveis que lhe faziam cair os cabelos, sua namorada já fazia uns três dias que não respondia as suas mensagens e não atendia suas ligações. Tudo depois de uma discussão que não acabou em sexo como sempre acabava.

A cabeça já estava doendo, cheia de problemas. Na volta o ônibus teve que quebrar, como sempre acontece em dias assim. Porque na verdade, esqueci de mencionar, aquele dia era o dia do azar escolhido pelos deuses, que, em seus tronos, tiraram de um saco cheio de nomes, do mundo todo, de todos os tempos paralelos que seguem em direções opostas, justo o nome desse rapaz. Isso sempre acontece com alguém em algum lugar e os deuses vivem rindo da desgraça de pobres coitados como esse, voltando a pé para casa porque já fazia trinta e três minutos e dezessete segundos que esperava um outro ônibus para tomar, mas esse não aparecia. Só faltava chover, mas não choveu.

 Chegou em casa mais tarde que o comum, como de fato já era esperado de quem leu desde o começo, porque o ônibus não passou mesmo. Pensou em beber um copo d’agua, tomou café. Todas as situações ainda não haviam caído sobre ele como um peso morto. Checou o celular mais uma vez. Nenhuma mensagem. Estava cansado demais para ligar, só pensava em tomar um banho e descansar. Se despiu no banheiro e ligou o chuveiro, a luz fraquejou e de repente acabou. Tudo estava... escuro.

Depois de um banho gelado daquele de congelar a espinha, ele foi tropeçando até o quarto, tateando no escuro. Pegou uma cueca (ou algo que parecia ser uma), uma bermuda e uma camiseta, que com certeza deve ter vestido do avesso e caiu umas três vezes de sua mão enquanto ele tentava encontrar a porta brincando de cabra cega e batendo em móveis que mudavam de lugares para dificultar sua passagem.

 Depois de quinze minutos e vinte-quatro segundos olhando pela janela para a rua iluminada pela luz da lua a energia voltou. Ele ligou a TV, mas o programa que gostava estava acabando, bem naquele momento que as letrinhas sobem mostrando nomes de pessoas desconhecidas. Ele sentiu vontade de comer e foi até a geladeira, procurar algo que só precisasse esquentar. Ficou realmente chateado quando descobriu um pedaço de lasanha com um cheiro muito estranho que sua mãe havia feito na semana passada e pediu para ele levar para comer em casa, pois na dela iria estregar de tanto que havia sobrado.

Estragou nas duas casas.

Foi até o quarto, ligou a luz, notou que o celular estava piscando. Sua namorada havia ligado duas vezes, mas o celular em um modo silencioso e passou despercebido enquanto a água fria lhe fazia pular de arrepio no banheiro. Tentou retornar, estava sem crédito. Ligou a cobrar, fora de área. Ele sentou na cama, com o olhar fixo no celular, não havia muito o que fazer. As vezes os deuses pegam pesado demais para uma simples diversão e depois gostam de bancar os senhores da moral e da ordem.   

Sentiu fome mais uma vez, pensou em pedir uma pizza para comer, que é o que as pessoas fazem quando não querem cozinhar e chamam um amigo para comer ou simplesmente, como nesse caso, só estão muito chateadas com a sequência de coisas que ocorreram durante o dia e gostariam de acabar com toda essa tristeza comendo algo que tem um gosto muito bom e geralmente não faz tão bem à saúde.  Ele foi até sua sala, agora na TV passava um programa de entrevista onde as perguntas eram todas sem nexo e o apresentador queria apenas que o entrevistado fizesse o gancho para ele lançar suas piadas infames. Pegou o telefone e descobriu que esse estava sem linha. Então não ligou.

Ficou irritado.

Talvez você, caro leitor, que viu os acontecimentos se desenrolando ao longo dessa narrativa até agora e tenha achado o autor de um péssimo mal gosto e falta de criatividade para criar situações de fato ruins, saiba que esse que narra não tem o menor controle sobre o que acontece na vida das pessoas e em especial na desse sujeito. Os deuses, eles sim, são os verdadeiros culpados. Gostam muito de comédias, e principalmente a da vida real (que na verdade não deveria ser um termo adequado por serem os deuses seres celestiais e superiores e a vida “real” deles não refletir nem um pouco a nossa).

Eles gostam de ver como a nossa vida é um tédio após o outro e como a felicidade é tão mais entediante que o próprio tédio, (isso não pensam só os deuses como algumas pessoas também, mas não é o caso do rapaz em questão, ele somente não teve sorte esse dia pois seu nome saiu no sorteio das brincadeiras dos deuses) e as vezes, como já dito, aprontam essas peripécias com os seres mortais. Isso quando não atacam de romancistas, usando o pseudônimo de Destino, e escrevem um épico sobre a vida de algum humano, nesse caso até parece mesmo algo bom, geralmente é uma pessoa virtuosa, que viveu intensamente, ficou conhecida por seus talentos e por seu carisma com os outros mortais. Mas aí os deuses se chateiam de escrever a vida das pessoas e deixam-nas para lá, então a pessoa some da vista dos outros ou simplesmente morre logo. Claro que isso não acontece com todos e a maioria tem esse “livre arbítrio”, que é um termo bonito para dizer que eles não ligam para o que você faz.

Tendo alertado, caro leitor, sobre esse aspecto importantíssimo do que lhes conto, retornarei a esse dia que, como costumam chamar quando os deuses estão a solta, “dia de cão”.

O programa de entrevista havia acabado, para o bem e para o mal. E o dia também já estava no seu fim. Com fome ainda, ele pensou em sair para esfriar a cabeça e comer algo em algum lugar aberto ou até mesmo comprar a pizza e voltar para casa, já que a pizzaria não era tão longe.

Foi até o quarto mais uma vez, notou que estava uma bagunça aquele lugar. Pegou um moletom e o celular. Desligou a TV, pegou a chave de casa. Trancou a porta e abriu o portão, saiu e trancou o portão. Lá fora a lua tomava o céu de uma forma bela, iluminando a rua que já começava a ficar deserta.

Andou um pouco, virou uma esquina. Havia um bar aberto. Pensou em beber, mas estava com mais fome do que com vontade de encher a cara. Andou mais um pouco, esperou o sinal abrir para atravessar. Atravessou, chegou na rua da pizzaria e percebeu que ela se encontrava fechada com uma placa escrito “LUTO” na frente. Começou a dar meia volta, passou novamente pelo bar, dessa vez de cabeça baixa. O que está acontecendo hoje? – Pensou ele.

    Quando chegou na rua de casa, já estava cansado. Uma moto passou ao seu lado numa velocidade gigantesca, voltou, parou ao seu lado como que se houvesse caído do céu ou brotado do chão e disse: PERDEU, É ASSALTO.

E assim acabou mais um dia, ele voltou para casa depois disso, ficou deitado olhando o céu como dito no começo. Os assaltantes não fizeram nada com ele, no dia seguinte, próximo do seu trabalho, um cachorro lhe mordeu o tornozelo. Isso já não foi culpa dos deuses, o cão não tinha simpatizado com o rapaz mesmo. Mas claro que é sempre bom lembrar que se os deuses não pregassem sempre alguém para Cristo e fossem mais profissionais nos seus cargos, muita gente estaria bem.

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